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Valsa

é pra falar de corpo?

Versos brancos para o corpo branco

Azuis os olhos

Cereja a boca

Derme, epiderme

Pele

Pele a pele

Pé no chão

Pernas brincam sob o lençol branco

Pêlos poucos

Pêlos claros

Arrepios

Dança de curvas secretas

Verdades à contra-luz


Naufrágio


Ali deitada do teu lado vi um horizonte. Algo como uma linha fina, um traço quase invisível que separava esse mar de águas paradas e o céu, azul mas sem pássaros. Talvez fosse a tua culpa.

Ali deitada na tua cama, sentindo o cheiro do teu cabelo, avistei essa rachadura no teto. Esse céu sem estrelas que se estende sobre nossas cabeças e que agora nos oprime nesse mês de julho. Pobre de meu céu, testemunha das constelações que criamos. Agora a rachadura. Talvez fosse o concreto cedendo aos poucos, formando goteira.

Me levantei. Na ponta dos pés, com a ponta dos dedos, podia segurar a rachadura. Enquanto você, ali deitada, dormia um sonho ainda mais distante que o meu e nem desconfiava do que acontecia na sua própria cama. As gotas se formavam ao redor da ponta dos meus dedos. Escorria lágrima dos meus olhos. Doces ou amargas, as águas se misturam. Cada gota, uma a uma, percorria os meus dedos. Eu não sabia mais por que ainda tentava. Mas não podia deixar chover sobre nossa cama. Não podia. De repente, o horizonte, cada vez mais perto. E a tormenta que afunda o nosso barco. Talvez fosse o meu medo.

Você, mocinha em apuros, e aquele pirata te levou embora. Sozinha nesse mar, eu só tinha essa linha e essa rachadura. Cansada demais, soltei e me deixei cair na cama, deitada do teu lado. E esse céu que desaba água sobre o nosso pecado. Talvez fosse esse amor pela metade.

A mentira

Já cansei de ouvir que mentira tem perna curta. O maior defeito da mentira não está no tamanho das pernas, mas no seu poder. Poder de bomba atômica. Matematicamente, se colecionamos dez momentos bons e, no final, um deles – só um deles – foi mentira, todos os outros são subtraídos a zero. Agora deixe os números de lado. Quanto a mim, você destruiu a minha Hiroshima.

Planeta Anão



[Parte 1]

Tendo nascido na era auto-ajuda, Marina se sentia enjoada perto daquele tipo de pessoa que sempre tinha uma frase feita na ponta da língua para levantar o astral nos momentos de tristeza. A tristeza é boa, ela pensava. Se nunca tivesse ficado triste, não saberia o que é alegria. Se nunca tivesse tido uma foda ruim não saberia até hoje o que é uma foda boa. Marina agradecia em segredo a cada foda ruim que teve. Fazia isso mentalmente e baixinho enquanto esperava o ônibus chegar.

[Parte 2]
E se existisse uma resposta astrológica para tudo? Marina odiava astrologia. Era capricorniana e soltava vômitos múltiplos quando diziam que capricornianos são sérios e responsáveis. Será que só ela percebia que data é uma coisa inventada da mesma forma que o Papai Noel e o coelhinho da Páscoa? Como separar pessoas pela data do nascimento e dizer que fulano é legal porque nasceu dia 20 de abril e Mariquinha é nojenta porque não nasceu algumas horas antes, quando a lua ainda era cheia e a ursa maior ia de encontro às três marias? Marina pensava nas besteiras astrológicas que já tinha ouvido ali parada olhando para aquele babaca que queria explicar o fim do namoro dela culpando seu ascendente. Rafael – o nome do babaca.


*Trechos do romance "Planeta Anão"

São Paulo


- Mas por quê São Paulo?

- Eles precisam de mim lá. É uma ótima oportunidade, não posso perder. – Disse ele se levantando da cama e olhando para o chão desesperadamente atrás da camisa. Ela aponta para o pedaço de pano branco jogado a centímetros de distância.

- São Paulo é longe de mim. – Disse ela de cabeça baixa num tom infantil.

Depois de vestidos, ninguém fala mais palavra alguma. Depois de tanta discussão, o silêncio era a escolha mais sensata. Há pessoas que negam a sensatez. João não era desses. Racional, matemático, pessoa pé no chão, normal, João era como todo mundo. Marina era vegetariana e tinha tatuado no braço uma clave de Sol. Ela era só coração e presente, mas egocêntrica demais para confessar que sentiria falta.

- O táxi chegou. – Ela disse pegando uma das malas no chão da sala. Ele tirou da mão dela e carregou tudo sozinho para o táxi.

O caro amarelo parado na frente do prédio, esperando João embora. E Marina que não teve coragem de olhar para ele no elevador. No táxi, a única palavra: “Aeroporto”.

Enquanto ele verificava documentos, passagem, procurava seu portão de embarque e se perguntava insistentemente se não esquecia nada, Marina sentada no banco via as pessoas passarem. Apressadas, como sempre. Fazendo planos. E a única coisa que Marina planejou até agora era chegar em casa e tomar banho. Talvez depois bebesse café e colocasse o cd do Chico para tocar. Talvez chorasse ao olhar a cama vazia e o lençol ainda amarrotado. Mas isso ela não planejava. Marina era do tipo de pessoa que não planeja, mas tinha guardada a imagem deles dois sentados no sofá com os cabelos brancos com um álbum de fotografias nas mãos. Rindo juntos. Mas isso era um plano?

- Meu vôo é daqui a quinze minutos. – Disse ele. E Marina distraída olhava um menino de cabelos loiros sentado ao lado com sua mãe tentando abrir com os dentes um pacote de biscoitos. – Escutou, Marina? Eu vou embora daqui a quinze minutos.

- E quando você volta?

- Eu não sei se eu volto, Marina. Eu já te expliquei isso.

Ela olhou para o painel com o horário dos vôos. Lembrou sem querer da festa em que se conheceram. Ela tinha acabado de voltar da Itália. Ele estava bebendo cerveja. E pensar que esse tipo de coisa começa só com uma troca de sorrisos. Um gesto tão simples. Quando olhou para ele de novo, João já estava com as malas nos braços. E com água nos olhos ela insistiu:

- Mas por quê São Paulo?

Ele não respondeu. Seguiu em direção ao portão de embarque e ela foi atrás correndo meio desengonçada, com os braços cruzados apertados, olhando para o chão. Ele beijou sua testa e disse:

- Vou sentir saudade. – Mas ela não disse mais nada. Se virou e foi andando embora.

Olhando ela de costas indo na direção contrária, João disse para si: Ela que vai me deixar, ela quer ser aquela que vai dar às costas. Olhou depois para a passagem nas mãos: São Paulo. Ele lembrou pela primeira vez daquela troca de sorrisos. Da cerveja e da menina de cabelo preto sentada no sofá na festa na casa do Fábio. Lembrou de ter sentado do seu lado e ter perguntado:

- Tudo bem?

- A Itália é linda. Vou morar lá um dia. – E lembrou de ter escutado isso milhões de vezes nesses dois meses.

- Marina! – Ela se virou – Eu fico.

- Não, João. Você tem que ir, estão te esperando em São Paulo.

- Então vai comigo, Marina. – Disse ele em um tom quase de choro, que soa a desespero engasgado.

- Quê? – Ela franziu a testa.

- Vai comigo e a gente casa.

- São Paulo é pequena pra mim, João. Achei que você já soubesse disso.

E então ela se virou e foi sim aquela a dar as costas. E não teve que ver o outro partindo. Marina deixou João e seguiu sem procurar ser entendida.

Um novo continente


Eu percebi que o aquecimento global, de uma maneira ou de outra, afeta a minha vida. Não de uma forma tão óbvia quanto a mosca que pousou na minha sopa ou a minha tv quebrada bem na hora do horário nobre. Mas me dei conta de que os ursos morrendo afogados no Pólo Norte afetam a minha vida. E eu ainda não estou fazendo um manifesto.

Eu descobri que, quando acordo sorrindo para o meu jardim, uma brisa leve passa e espalha sorrisos nos rostos das folhas. Porque a pétala da rosa é uma extensão de mim mesma. E eu sou vista do espaço pelo cacto que plantei no canteiro da frente.

Aprendi que uma panela de brigadeiro para calar o chororô é, no mínimo, gostoso. Mas isso eu aprendi levando muito na cara. Aprendi a ver a minha cara em outras caras. Aprendi uma técnica de caretas.

É que cada vez que eu danço, alguém abaixa uma arma. E agora sei que fazer alguém sorrir já um manifesto de paz.

Descobri que dentro de mim moram o vermelho e o azul e que com eles eu posso colorir todo o bege do mundo. E consegui seguir em frente sem dar ouvidos a pessoas de cor mostarda. Descobri como manter a vida cor-de-rosa.

Danielle



(para ler em voz alta)

Danielle Danielle. Esse era o som que o cavalo fazia quando andava. Danielle. Ela não gostou do som. Danielle Danielle. Mas as patas do cavalo tocavam o chão e faziam Danielle. Ela fez cara feia e disse que não era um cavalo. Perguntei se ela não sentia o som. Danielle era o som da pata do cavalo tocando o chão.

Do mesmo modo que Cecília é um sussurro no ouvido, Clarice, uma gota d’água caindo, Lourdes, a água do chafariz e Natália, um tapa na cara, o cavalo andava e Danielle ecoava.

Se fizéssemos silêncio, verias que é um som bonito. Só que palavra não se vê nem se escuta, se sente. E teu nome é uma palavra. E está entre as mais bonitas. Você não sente, Danielle? Sinto muito – ela disse. E ainda me acusou de sentir demais.

Danielle Danielle. O cavalo se aproxima, balançando sua crina. Montada nele, com seu vestido longo e pomposo, a princesa dos olhos azuis de piscina e cabelos loiros de platina. Danielle, sente as cores? Consegue sentir a rima? Ela ria de mim, mas não pude parar: Te adoro, Dani, minha menina.

Tua Música


Eu, instrumento

Teu amor

Em acordes

Teus dedos delicados

Corda em corda

Deságuo em dança

Me toca

Medo


- Por que você não diz logo o que você sente por mim? - Disse ele enquanto ela se levantava da cama ainda nua, deixando o lençol escorrer pela pele, indo devagar em direção ao banheiro.

- Você precisa que eu fale para que você possa falar? Ela perguntou com uma voz rouca e calma e ele riu - Que eu saiba o nome disso é insegurança.

- Pára de besteira e diz logo que você me ama e que não consegue viver sem o meu pau. – Disse ele bem alto se esparramando na cama em estado de rei.

- Digo melhor: Quem dera o teu pau fosse grande como o teu ego. – Ela falou alto com raiva de mulher traída. Ele riu mais alto ainda em som de deboche.

- Agora a pouco você não estava reclamando de nada. Estava até pedindo mais. – Sentada na privada, ela enrugou a testa e bateu a porta do banheiro com raiva.

Ficou por um tempo lá dentro. Se olhou no espelho, chacoalhando a cabeça em negação, e ficou pensando em como ele tinha talento para estragar momentos que seriam bons. Talvez até perfeitos. Ele lá fora deitado na cama pensando nela lá dentro.

- Pára de palhaçada! Volta pra cama. Tá cedo, ainda dá pra dar mais umazinha.

Ela abriu a porta de súbito. Olhou para ele na cama com ar sério. Soprou o ar com raiva. Apagou a luz do banheiro e foi para a cozinha beber água. Ficou lá sentada nua na cadeira da cozinha se perguntando por que ainda se sujeitava a dormir com homens desse tipo.

- Já me cansei desses seus machismos imbecis. Não sei nem por que eu ainda te dou linha. Você não faz nada por mim! – Disse alto quase em voz de choro. Mas choro de raiva - Tem muito homem por aí me querendo e eu aqui perdendo o meu tempo com alguém feito você que não tem nem capacidade de dizer uma coisa bonita depois que me come.

Ele ficou sério. Olhou para o teto e respirou fundo. Talvez estivesse sentindo ciúmes. Ela não podia dizer, nem queria mais olhar para ele. Ele ligou o rádio que estava na cabeceira da cama. Ficou lá deitado pensando em coisa nenhuma cantarolando a música do U2 que tocava na rádio. Uma coisa estranha tocou sua barriga, lá dentro do estômago.

Não sentia essa coisa desde que era pequeno e ainda levava chineladas da mãe. Era um sentimento estranho que começava no estômago e ia subindo até o peito. Como se tivesse uma mão apertando tudo por dentro. Massageando devagar. Doía. Às vezes parecia uma coisa boa.

- Você acredita em amor ou promessa?

A pergunta chamou a atenção dela, que saiu em passos rápidos da cozinha em direção ao quarto, os cabelos voando para trás. E, quando sentou-se na cama sobre as próprias pernas apoiando as nádegas nos pés, os cabelos caíram sobre os seios. Ele achava lindo.

- Eu acredito em alma gêmea.

- Tá de brincadeira né?

- Eu acredito em alma, em uma coisa maior que o corpo, mas que está diretamente ligada a ele. - Gesticulava tentando fazê-lo entender. E suspirava em encanto - Eu não sei explicar. Mas eu sei que existe.

- Não sabia que você tinha esse lado religioso.

- Não é religião. Já reparou como cada pessoa é um pedaço da gente mesmo? É como se a gente tivesse vindo de uma coisa só. Essa coisa é o que eu chamo de alma. Na verdade, chamo assim por falta de um nome melhor.

- E a alma vai pro céu quando a gente morre? – Disse ele com um sorrisinho de deboche, com a boca de lado.

- Não, seu ridículo. A alma fica aqui se dividindo em mais almas e completando o sentido de mais pessoas.

- É uma coisa meio Clarice Lispector né?

- Não. O nome disso é fé.

- Já que você gosta de dar nome para as coisas, por que você não dá um nome pro que você sente por mim?

- Tesão. Serve?

- Não tem sentimento então?

- Tesão é sentimento.

- De todos o mais superficial.

- Talvez não. Porque o tesão é feito de instante. O amor precisa da saudade. E eu gosto do teu abraço de homem. Isso já me basta.

- E você já amou?

- Já amei minha mãe.

- Palhaçada! Já amou um homem como você me ama?

- Eu nunca disse que te amo. – Disse olhando nos olhos dele e levantando a sobrancelha.

- Ama só o meu pau então?

- Por que você tem que fazer isso sempre? A conversa tava boa. Por instante pensei até que você não fosse morto por dentro.

Ele olhou para baixo e disse bocejando:

- Amanhã eu acordo cedo.

- Boa noite.

Ela deitou lhe dando as costas. Puxou o lençol e se cobriu. Ele desligou o rádio e apagou o abajur. Hesitou na vontade que veio e que não sabia de onde. Aquela coisa que veio do estômago e foi para o peito: chamou isso de nó. O nó apertou fundo. Não agüentou mais e abraçou ela. Segurou sua mão, encaixando seus dedos nos dedos dela. E com a boca no ouvido dela disse baixinho:

- Eu te amo.

Ouviu num sussurro de resposta:

- Eu sei.

Faber Castell


Me dei conta que poderia viver perfeitamente bem sem sexo. Perfeitamente? Não que não sinta falta, até sinto. A falta é o meu mal maior. Sinto falta até de dor, às vezes. Mas a verdade é que, se pudesse, trepava todo dia. Estaria trepando agora se ela estivesse aqui. Ela fala “fazer amor”, mas eu acho isso uma palhaçada. Tudo bem que até pode servir para colorir um pouco a coisa toda e a cena de nós duas ali peladas em cima de uma cama suja de motel barato não parecer uma simples trepada de sábado a noite. Aliás a única coisa que ela sabe fazer é colorir.

Colorir até é legal. As coisas coloridas são sempre mais bonitas. O mal é que o colorido dela às vezes fica meio borrado. Dá vontade de apagar. Bebo vinho para passar uma borracha nas coisas. O mal é a dor de cabeça no dia seguinte deixando tudo ao redor num tom cinza meio morto.

Ando achando que desaprendi a viver sozinha. Quando me vejo sozinha decoro um poema ou canto uma música mentalmente. Mas agora para apagar um pouco essa solidão eu pensava nela. Se bem que não sei ao certo se pensava nela para não sentir a solidão ou se pensava porque não conseguia não pensar.

A gente nunca fica só, só sentindo solidão. Sempre tem alguma coisa para pensar, um pensamento para acompanhar a gente. Sempre tem um problema atormentando. Ou uma lembrança boa que surge sem pedir licença. Não consigo separar pensamento de sentimento. Acho isso um defeito. Pensar demais, às vezes, me deixa opaca.

Acho que cochilei sem me dar conta disso. Acordei e não pensava em mais nada. Lembrei de uma música da Legião Urbana. Sempre que pensava em solidão me lembrava dela. Depois me lembrei do jingle de um comercial qualquer. E o jingle dominou minha mente como uma droga. Droga de musiquinha que gruda na cabeça!

Às vezes sentia necessidade de fazer ausência. Por isso descartava coisas e pessoas facilmente. Gostar e desgostar para mim era quase um passa-tempo. Era não, sempre foi e ainda é. Isso para mim sempre foi fazer ausência, nunca soube chamar de outra coisa. Fazer ausência é deixar-se parede descascada, precisando de tinta. Fazer ausência não precisa ser ausentar-se dos outros, não simplesmente fazer-se ausente para os outros. Fazer ausência é se esvaziar de amor. Às vezes até de amor próprio, quando não sobra mais amor a nada. O que eu queria mesmo era alcançar era o estado de presença. Nunca fui presente: imediata, ativa, pessoa momentânea. Nunca.

De uns dias para cá, me senti bege. Bege é cor de gente séria, gente racional, gente que coloca coisas em ordem. Gente que pesquisa o significado das palavras no dicionário, mas não consegue sentir o sabor delas. O bege não tem gosto de nada. Senti falta de um amarelo sol. De um vermelho sangue, um azul borboleta, um preto tesão. Do branco do sutiã dela. Me dá um giz de cera, por favor. Pega essa merda de aquarela pra mim!

A solidão me consome em bege. Cor feia da porra! Resolvi ligar para ela. Disquei o número, mas percebi de repente que só precisava de um lápis de cor.


Rico rico de marré de si. Tinha tudo o que queria ter. Tendo já seu lugar ao sol, acreditava que ir à igreja no domingo era a garantia de uma vaguinha no céu. Até que um dia tudo se foi.

Os sorrisos não passavam de fotografias queimando e desfigurando de pouco em pouco as alegrias congeladas. O que você sente quando fica pobre de tudo?

Se viu sentado no meio-fio, de frente para o espaço onde ficava a sua casa. Um sentimento, que talvez fosse ódio, começou a subir pela garganta. Sentiu pena de si mesmo pela primeira vez. Se perguntava o que meu Deus! tinha feito para merecer aquilo. Viu a fumaça que ainda saía dos destroços dançando no ar. Ficou por muitos minutos hipnotizado pelo balé cinza da fumaça. Olhou para o céu de poucas estrelas. E de repente se lembrou de estar domingo na igreja e, sem ainda entender, sentiu vontade de dizer:

- Isso nunca foi meu.

A estrada


No princípio, ela engatinhava. Mas agora, ereta, podia andar com as próprias pernas. E nem pedia colo.

Com seus pés descalços ela segue pisando de leve o asfalto quente. O vento que sopra norte e as linhas brancas pintadas no asfalto preto a guiam. Passa um carro ou um caminhão, um ônibus de viagem, quem sabe. Buzinam para que ela saia do meio da estrada. Ela continua. Pisa e pisa, pé após pé, os cabelos e a saia esvoaçantes. Sorria e chorava. Aprendeu bem cedo esse sentimento que mistura tristeza e alegria.

Prédios e montanhas. Passava por lugares em que só via mato por todo lado. Via vacas pastando não muito longe dali. Uma vila com crianças correndo e soltando pipa. Um enorme arranha-céu cercado por arquitetura moderna. A estrada percorria cidades pequenas e grandes metrópoles.

O esmalte das unhas dos pés descascavam. Tropeçava numa pedra. Saía um pouco de sangue do dedão. Entre um tropeço e outro, parava e, sentada no meio-fio, suspirava fundo. Se erguia de novo.

Olhava um carro passar. Lhe ofereciam carona. Mas o percurso com rodas não era o mesmo que o com os pés no chão. E os pés doíam. Passava por caminhos tão escassos de sombras e repletos de coisa alguma e o sol tão forte que o asfalto virava brasa. Quando chovia, ela gostava.

Com dor nas costas, deixou a mochila pelo meio do caminho. O peso na consciência era o máximo que podia suportar. E pra quê carregar o passado nas costas? Se as pernas doíam, andava mais depressa para esquecer.

Muito cansada e sem fôlego ria-se lembrando da gente que esquece que a liberdade é uma estrada. E ela segue em frente. Ah se pudesse ir de avião!

Arpoando



Nasci em janeiro. Em algum lugar na Tijuca. E desde cedo eu procurava. Fui para Ipanema ver se estava lá. Gringo, gente de sangue azul, arrastão, posto quantos. Briguei com a praia, ela não tinha vento para me dar. Nem no Arpoador, que fica tão lindo em foto, tão feio em vida. Fechei os olhos. Jurei que vi uma baleia. Não, não estava lá.

Fui ver se estava na Barra. Só achei coisa mesquinha. Tentei me encontrar no funk. Até bebi um gole de bossa nova. Estava me apaixonando pelo Chico, mas cantei com a Fernanda Abreu. Me levaram para a Portela. Mas nem o samba deu onda. E eu continuava procurando.

Me escondi por uns tempos na Lapa. Por alguns minutos achei que tivesse encontrado. Hipies de calçada, criança de rua, cheiro ruim, cheiro de pobreza, beleza de rio antigo. Nunca subi no bonde para Santa Tereza. Ao invés disso, corri pela escadaria. Já tentei ser flamenguista. Não gosto de futebol. Onde? Cadê?

Eu chio muito. Isso às vezes irrita. Uma vez me chamaram de carioca. Eu não uso fio-dental na praia, nem vou ao Maraca no domingo. Guardei uma foto do Cristo. Não sei por que, mas passei a vida inteira sentindo falta.

The bridges you’ve burnt along the way



Começou com uma ambição. Cobiça. Necessidade de ter o que não tinha. Viagens a Europa. Jantares de negócios. Carro do ano. Pensão gorda do ex-marido. Caviar. Sexo com o chefe. Apartamento de frente para a praia. Férias em Búzios. Celular. Aliança de ouro. Prada e Dolce & Gabana. Vida de sonho.


Ninguém esperando-a em casa. Até o cachorro desistiu de lhe pedir atenção. Economizava tanto o tempo, que ele passou a comê-la viva. Relatório para segunda. Dois anos sem namorado. Divórcio. Continuava adiando o sonho de ter filhos. Sem ninguém para lhe perguntar como foi seu dia. Deixou de ser sensual há muito tempo. Agora só valia o que vendia. E vendia tudo o que podia. Existência de vácuo.


Quando chega a noite, tira suas jóias, seu sapato italiano, tira o sorriso falso do rosto, limpa a maquiagem, despe-se de suas roupas elegantes e fica totalmente crua diante do espelho. Felicidade removível.

Quanto custa uma lágrima?

O segredo da menina


O segredo era esse. Só que ele é tão óbvio que ninguém enxerga. Mas ela conseguia ver até o que não estava. Se não estava aqui, estava lá, e ela via. Se não estava agora, já esteve, ou vai estar, e ela via. Não precisava nem da existência. Gostava de passar o tempo debatendo consigo mesma.


Não gostava de felicidade montada. Casamentos cheios de pompa. Sorriso forçado em foto de família. E ser feliz por acaso pede cerimônia? Gostava era das coisas pequenas. As coisas aqui. Das coisas ali já estava farta. Achava graça de quem precisava ter o que não tinha. Ela era assim. A menina. A menina que ainda mulher era menina. Porque vivia um estado permanente de infância. Uma menina de proporções maiores. Ela era poderosa. Mas não poderosa de sábia ou poderosa de rica. Era poderosa de si mesma. Quase ninguém consegue ser.


As flores se abrindo. Cada verde, cada rosa, as formiguinhas que se mexiam no jardim. Pessoa semente. O sorriso da mulher grávida alisando seu barrigão. Dois corações em ritmo de bossa-nova. O cachorro que pula o mais alto que pode só para dizer olá para o dono. Para a melhor recepção, o melhor anfitrião. O sabor do chocolate derretendo na boca. A risada da melhor amiga no telefone. A piada que ninguém mais entende. Só de saber que pode escrever poemas com a dança. Os livros que já leu. Os livros que ainda não leu, organizados em ordem de espera. A cadelinha chacoalhando o pêlo molhado após o banho. A água que respinga deixa roupa, cabelo, tudo encharcado. O vento da praia batendo forte no rosto. Cheiro de protetor solar. Os olhares trocados num sábado a noite. O frio na barriga. O presente que ganhou no natal, depois de ter passado o ano inteiro sonhando com ele. O cafezinho da tarde na casa da tia. Tia mãe. O abraço assassino da saudade. Matador contratado, pago com adiantamento, não aceita cheque pré-datado. Os pés quando tocam o chão gelado. Era mais que o bastante.

Clara



Subiu o primeiro degrau, o segundo. O vento bateu em seus fios dourados. Lá de cima Clara via as luzes da cidade. Como eram lindas! Imaginava o que as pessoas faziam com suas luzes naquele instante. A família se entretendo com a trama colorida da novela. Um grupo de jovens bebendo cerveja no bar de lustres antigos. O casal apaixonado num jantar a luz de velas. Pessoas dançando sob a luz fluorescente da discoteca. O homem de terno trancado em seu escritório com a luz azul do computador refletindo em seu rosto. Do alto do prédio, Clara podia ver todos eles. Todos aproveitando suas vidas, suas luzes. Tantas luzes!

Se lembrava de tudo o que a fez chegar até ali. Às vezes se sentia como um rato de laboratório correndo em sua roda incansavelmente. Corria e corria em direção a coisa alguma. Às vezes se sentia num reality show, assistida vinte e quatro horas por dia e sendo julgada cruelmente a cada coisa boa ou ruim que fazia. As coisas ruins sempre pesavam mais. Por mais que Clara fosse uma menina bonita, não tinha brilho próprio. Sempre a comparavam com alguém, uma atriz holliwoodiana, uma cantora de mpb. Ela montava e desmontava sonhos como brinquedos. Não levava seus namoricos a sério. Não sentia saudades de quem partia. Não conseguia ver sentido nas coisas. Nunca sentiu medo. Clara era triste a vida inteira.

Ela respirou fundo, soltou o ar. Estava certa do que faria. Até que o medo subiu frio pela espinha. Pela primeira vez, a vertigem. Um passo a mais e Clara apagaria a sua luz para sempre. Os táxis passavam com seus faróis altos. Uma lágrima brilhante escorria no rosto de Clara. Se sentiu tonta. Sabia que poderia cair dali de repente. Era uma sensação nunca experimentada. Clara se sentiu fora de sua jaula pela primeira vez.

Agora ali vendo de camarote todas as luzes da cidade, as luzes das pessoas, vendo a faísca que os carros faziam quando passavam em alta velocidade. A um passo do chão e do fim. Clara sentia o vento levando seus pedaços embora. Era pela primeira vez Clara.

Abriu os braços. Fechou os olhos. Levantou a perna direita, pronta para dar o passo final. Sentiu uma mão macia segurando sua mão. Esqueceu por um momento o que ia fazer e olhou para trás. Os olhos castanhos claros que lhe diziam para não pular. Olhos que brilhavam mais forte que o desejo de fim. E Clara encontrou a luz que procurava.

Dança e Voz


Tentava expressar o sentir sem palavras. Sintonizar o ritmo de fora com o ritmo de dentro. Fazendo o coração bombear acompanhando a melodia cantada no rádio. Deixar os pés fazerem sua mágica. Agarrar o ar. Cantar e não se ouvir. O movimento do corpo cantando mais alto. Tocar o céu e descer até o chão. Viver o estado de tudo. As pernas por mais que doam não param. Ser invencível. Dançar o silêncio do mundo com a melodia que corre nas veias. Cada suor uma nota.

Dizer com o rebolar da cintura o que não se diz com a boca. Inventar um novo universo. Resgatar uma vida passada. Se sentir mais leve que o som. Ser surdo e mudo. Uma língua estrangeira. Se comunicar com aquilo que sempre existiu calado no dentro. E esquecer. Destruir o ontem num passo para a esquerda. Apagar o amanhã rodopiando para a direita. Girar e girar.

Tocar mundos distantes com os braços. Os cabelos balançam em ritmo próprio. Ignorar a multidão ao redor. Pessoas convergidas em energia. Sentir a luz do refletor brilhando dentro de você. Experimentar o estado de pássaro. Entrar em transe de deus. Se sentir nu e outro.

Minha voz, minha dança.

Vento Ventania


A menina que ventava morava no apartamento debaixo. Da janela da sala eu podia vê-la todas as manhãs na varanda, de sutiã e short, tomando café e olhando para a rua, para o céu, para o nada. O sutiã guardava um nada de juventude florescente, que mal marcava a blusa, mas capaz de mexer comigo mais que os seios fartos de mulheres nuas em capa de revista. Alguns minutos mais tarde eu a via saindo pelo portão do prédio, usando o uniforme da escola e um perfume, que cheirava à brisa da manhã e conseguia escalar o prédio até minhas narinas, atiçando uma brasa dentro de mim até levantar o fogo que ardia pelo esôfago.

Segunda-feira passada trabalhei até tarde e, na terça, acordei tarde demais para vê-la de sutiã na varanda. Desci para comprar o jornal e a vi na banca, uma saia esvoaçante. A menina. Bom-dia. Respondeu com o sorriso que levantou um vendaval de borboletas dentro de mim. Às vezes podia jurar que nesses encontros do acaso, entre um bom-dia e outro, podia ver um esboço de malícia e um brilho em seus olhos.

Ela na varanda, esses encontros, o desejo de ter a menina. A risadinha que sempre acompanhava o meu nome quando saia de sua boca. O desejo de olhar debaixo do sutiã da menina. Tocar cada centímetro da pele da menina. Medo e vontade, vento frio, arrepio.

Ontem ela passou o dia em minha casa. A mãe não sabia. A diferença de idade não era o motivo do desejo, mas confesso, só aumentava. Mas a verdade é que o que mais me fascinava na menina ventania era que ela conseguia controlar tudo, era a pressa que ela tinha para viver momentos, como se tivesse no bolso uma lista de momentos a serem vividos. E ela realmente tinha. Sonhar era muito pouco para ela. Ela me ensinou que a vontade soprava mais forte que o sonho.

Ela sentou-se no meu colo, sorrindo, mas o sorriso inocente era o meu. Ela também tinha o poder de me controlar. De me refrescar feito brisa para depois me devastar como um furacão. Encostou a cabeça nos meus ombros e me contou o seu segredo. Ela era dona de tudo. Da chuva e do vento. E podia fazer o que quisesse. Era dona. A menina, minha vizinha. Me beijou. Me abraçou. Abusou de mim de todas as maneiras possíveis.

Tinha treze anos e deitou na minha cama. Tirou o uniforme sem que eu pedisse. Os cabelos rolavam pelos ombros, como se ganhassem vida própria. A menina e seus cabelos que eu via todas as manhãs, flutuando ao vento, indo para a escola. Abriu o zíper da calça. A menina, que ainda tinha bonecas no quarto. Tudo sem que eu pedisse. As borboletas só se atiçavam mais e mais, ameaçando sair pela boca a qualquer momento. Os pêlos que nem tinha se arrepiavam com as minhas mãos grandes de homem adulto. E eu lembrava dela no domingo, entrando no carro do tio, o vento levantando a saia. Sua calcinha branca, a mesma que usava naquele dia.

O corpo branco da menina iluminado pela luz do sol das três horas da tarde que invadia meu apartamento pela janela. O vai-e-vem. Vem, menina. Ela não falava nada, e eu tinha medo de falar alguma coisa. De fazer a menina ir embora. Apenas suspiros. De prazer, de dor, não sei. Suspiros.

E quando aquele momento de silencio acabasse? Quando a menina fosse embora? Quando ela contasse para as amigas? E se... O ritmo só acelerava. E a menina suspirava. Ela era leve, parecia feita de vento. Vento forte que me levava.

Com a cabeça sobre o meu peito, tentei ainda falar alguma coisa, mas a menina sshhhiiiiiiiii. Sorriu com os olhos. Depois se levantou, pegou a calcinha branca no chão. E no dia seguinte ela estava na varanda de novo. De sutiã, de short, com uma caneca de café na mão. Eu olhando pela janela, ela me viu. Apontou para o céu. Vai chover hoje. – disse. Mas não havia nenhuma nuvem.
E choveu. Porque ela quis e a vontade dela era maior que a previsão do tempo. A vontade dela era maior que ela mesma. Eu pensava. Enquanto isso, a vontade da menina me sugava para seu mundo cor-de-rosa e cinco horas da tarde a menina voltou da escola, com a roupa molhada, nem passou em casa. Subiu correndo as escadas e antes que chegasse à minha campainha eu já tinha aberto a porta.

A roupa molhada no chão da sala. Eu com minha menina no sofá. Tínhamos ainda uma hora e meia até que a mãe dela voltasse do supermercado. E o temporal que não parava.

No Donut For You


A billion years ago, we all wanted something and we did not know what. Then we walked in our way to technology. And here we are, a post-modern civilization and our speeches now are consequence of the discharged information downloaded. But what do we really want to do with it? Watch cable TV? Read the newspaper? Chat with friends? Check our scraps on Orkut? We want nothing but it all. And if we can do everything simultaneously, we do it.

Yes, there is too much useless information, too much porn available, too much spam, everything just one click away from you. But there are also good things about technology and specially the internet, you have a whole world at your fingertips, and a whole life to explore it. So please do not get so obsessed. Because that is the real problem here, obsession, technology will not ruin your life, but it is not as good as you think neither. So take this world wide web in front of you and think of what you can make of it.

Online for chat?

A Confissão


No carro, voltando para casa, ele jurava para si mesmo: De hoje não pode passar. Fazia tempo que queria contar tudo para ela, mas tinha medo. Medo não só da reação dela, mas medo de si mesmo, medo de ficar sozinho.


Na primeira vez, prometeu para si mesmo que não aconteceria de novo. Foi só uma experiência, uma aventura, parte da crise de meia-idade. Mas lá estava ele de novo voltando de mais um encontro noturno secreto. E em casa a mulher a quem um dia prometeu fidelidade o esperava.


Deixar a esposa estava fora de questão, implicaria deixar todo um estilo de vida, do qual ele até gostava. Não poderia deixar aquele bairro, aquela casa, seus amigos casados e o futebol de domingo, as conversas sobre como filhos dão trabalho, levar os filhos na escola, não poderia perder o beijo de boa noite de seu caçula. Mas existia esse sentimento que o corroia por dentro e que fazia com que tivesse raiva ao olhar para sua mulher. Como ela não percebia que algo havia mudado? Como viver com esse peso de ser o vilão da história? Como deixar de amar minha esposa?


Chegou em casa e, enquanto a esposa estava na cozinha, o filho mais velho estava na sala ao telefone. “Desliga você primeiro.” Jovens e suas juras de amor eterno. – Pensou. Como era boa essa época em que se prometia para a namorada nadar todo um oceano só para ficar com ela. E agora ele se via ali, incapaz de não trair. Porque tudo o que precisava fazer era não trair, não olhar para a secretária no escritório nem para as meninas de biquíni na praia, não beber tanto, não dar ouvidos a amigos machistas, cumprir seu juramento. Agora era tão difícil. Deu um beijo na bochecha dela e foi tomar banho.


A água fria caía e ele continuava a jurar para si mesmo que tudo acabaria hoje. Contaria toda a verdade e depois imploraria por perdão. O importante era tirar aquele peso da consciência. Sentia a cabeça pesada, um pouco tonto. Quase tremia de tanto medo. E se ela não perdoasse? E se ela o mandasse embora na mesma noite? E se ele perdesse todos aqueles anos de casamento feliz? E pensava em milhões de castigos físicos que poderiam ser melhores que isso. E concluía: Ela me ama, me perdoa.


Sua única certeza era do amor, não só dela por ele, mas também dele por ela. E, se não fosse o amor, não estaria querendo contar a verdade. Se não fosse o amor, continuaria mentindo. E, se não fosse o amor, mesmo que ela desconfiasse ou até que descobrisse, negaria tudo. Mas o amor estava lá. E ele confessaria.


Quando saiu do banheiro, o filho já tinha deixado o telefone e ido dormir, e a mulher apagava a luz da cozinha e se dirigia para o quarto. Era agora. Deitou-se ao lado dela. Abraçou-a, beijou seu ombro. Suspirou fundo, ia falar.


- Querido, eu sei. – Ela disse.


E foi então que ele percebeu que ela também tinha medo.