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Corpo e voz




A casa estava vazia, num silêncio empoeirado. Entre os contornos turvos da meia-luz, tateava um recanto para o corpo. Joguei as chaves, soltei o cabelo e já com os pés despidos repousei num vão entre os móveis, sobre um tapete escuro. Percebi meus lábios traçarem um sutil sorriso -- Pequenos prazeres — pensei – que ingênua delícia. O corpo frouxo se entregava ao chão sem reservas.
Enquanto o corpo repousa, a mente remonta fatos, suscita certas lembranças e por um instante revive pequenos flashes, até eles serem dissipados por aquele silêncio amarelado.
Porém, algo reage a meu corpo, um ruído seco a desviar meu olhar cego. Sei que estou sozinha, por isso num primeiro momento me rendo ao devaneio. Mas de novo vem esse timbre. Meu coração acelera—O que será isso?—Não ouso abrir os olhos, espero bem quieta.
Tento reconhecer o dono da voz, nada, minha respiração abafa os sussurros que nada falam. Meus olhos não ousam abrir, não ousam, não ousam... A voz me toca! Fico gélida, num pavor que só o impossível pode conceber. Aquele timbre vai me tocando até me despir nota a nota. Meus olhos não ousam entender, mas meu tato vai percebendo e compreendendo cada tênue roçar, cada oscilação, cada atrito tenso ou impreciso.
Ele me tem, eu tenho medo. Mas tão inebriada por minha própria pele e por aquilo que meus ouvidos teimam escutar me converto em sim. O timbre se mistura a boca, corpo e mãos. Os barulhos abafados, que se convertem em voz e respiração, comungam com ele. Sou eu, agora, também som... Ele agora também é corpo, e naquele instante despidos de mundo somos um.



Attempting The Imposible, pintura de René Magritte, suscita como tema a figura do artista. A obra de arte sempre será maior que o artista, mas é pelo artista que a obra se configura. “Alguns homens vêem as coisas como são, e dizem: Por quê? Eu sonho com as coisas que nunca foram e digo: Por quê não?”, assim disse o dramaturgo irlandês, Bernard Shaw, é essa a postura do verdadeiro artista, que não teme se lançar no poético.
A arte tem suspensão do real em nome da criação, e isso fica evidente deste quadro, é como Shaw nos diz “Por que não?”. O manifesto surrealista também constrói essa idéia: “Não será o temor da loucura que nos forçará a hastear a bandeira da imaginação a meio pau”. Tudo nos é permitido na arte, e é por isso que ela é tão fascinante. Michel Foucault já colocava que “A ficção consiste não em fazer ver o invisível, mas em fazer ver até que ponto é invisível a invisibilidade do visível.”
Essa estância dá ao artista um poder especial, é ele quem usufrui primeiro dessa morada mítica. É pelas mãos dele que se faz aparecer o que até então não existia, para além de um simples artesão, que cria algo que em seu plano original é positividade, mas na exatidão de “poeta” pode continuar no negativo. Depois de citar Giorgio Agamben : “quem apreende a máxima irrealidade, plasmará a máxima realidade” posso pausar esse diálogo ousando citar Manuel de Barros: “Há histórias tão verdadeiras que ás vezes parece que são inventadas.

Haicais d'água




Haicais cheios de Maresia


Haicai – I

Quebranto do mar
É atiçar os pés ávidos
Que teimam em passos


Haicai – II

As ondas rasteiras
Tecem um véu em renda branca
Sobre pés e pernas


Haicai – III

Um cheiro de sal,
Mar, marés e maresia
Cobre, despe e cala



Haicais para dias de Chuva

Haicai - I

Uma gota cai
Molha a folha torta e borra
Letras em vitrais


Haicai – II

Gosto acre tortura
Sendo assim a nuvem cospe
E não chora a chuva


Haicai – III

Depois destas palmas
O sol dorme nesta praia
Precipita a chuva
Abertura nas paredes

Interrupção de um ruído
Espaços em branco
No terreno que ladeia
Uma corrente de água
Indivíduos silenciosos
Descrevem traços paralelos
Num misto de margens e silêncios
O que deságua no mar é turvo