Pensando arte I: "Metamorfose Ambulante - Imaginação e Transformação"

Desmentir:

A obra não é gerada pela demanda da platéia, nem pelo gênio do artista, nem pela reflexão da realidade externa a ela mesma, mas pela conciliação de homem e natureza. E eis aqui o motivo de os artistas não terem lugar na República. A teoria platônica fundamentada na construção da República perfeita funda a concepção que insiste até hoje no Ocidente da ruptura primordial que deu origem a tudo o que existe, em que Bem e Mal, Ideal e Sensível, razão e paixão, vida e morte, homem e natureza são concebidos como vetores opostos. Sendo assim, a arte, que não trabalha com outro princípio senão o do paradoxo de união dos contrários, é um princípio de caos que não encontra seu lugar no mundo platônico-ocidental. A natureza e o artista, o Bem e o Mal, o divino e o terreno se conciliam em obra de arte, que não reflete o universo externo, mas cria um universo novo, enquanto transforma o experienciador deste novo mundo. Nem o mundo nem a platéia nem o artista são mais os mesmos depois da obra de arte.

A lâmpada:

O mundo só faz sentido se percebido. No entanto, literatura não se institui apenas como percepção de mundo, mas como construção do mundo. A literatura como perspectivação que propõe a suspensão de uma realidade para assumir outra não passa da lixeratura, a arte acontece na própria percepção do mundo pelo artista. O sujeito que percebe o mundo e consegue moldar e agir ativamente com este mundo, fazendo parte dele e não o admirando como paisagem inerte em um quadro bonito, este é o poeta. A imaginação age como transe entre o interior e o exterior. O artista olha para fora de si e percebe que o que é nunca é, mas tem a possibilidade de ser. A obra de arte é gerada pelo ir-e-vir do intercâmbio do homem, que percebe o mundo a seu redor, e do mundo, que realiza esta troca com o homem. É a partir dos sentimentos e pensamentos do artista que a obra surge como potência que necessita ser emanada para fora, chegando a um possível leitor, a uma possível platéia, que é atingida por sua luz refletora e se alegra em êxtase.

A busca de nós mesmos:

A reflexão de quem somos, na busca de um eu que não se faz conhecer, isto é, inobjetivável, traduz o relacionamento da imaginação e da razão. A imaginação busca nas profundezas do objeto visto pela razão o antecedente à objetivação. O poeta lírico experimenta no ato auto-reflexivo a origem do seu desdobramento em eu-sujeito e eu-objeto, ou seja, a gênese do seu próprio ser.

O ator que se faz em mil e um personagens tentando encontrar o seu personagem primordial:

O eu-sujeito de Fichte é traduzido no poeta transcedental de Novalis, numa anterioridade como condição de possibilidade para o desdobramento em múltiplos eu-objetos. A razão não basta porque não transpõe o limite do eu-objeto pensado, só a imaginação é capaz de mergulhar no inobjetivável, de fazer a viagem “aos confins da terra ou aos reinos cósmicos do inferno, do purgatório e do paraíso”[1], à terceira margem do rio, a que o poeta transcendental se dispõe. O horizonte é a imagem perspectivada do objeto racional. O além horizonte é a experiência imaginativa de construção do não-visto, é a experiência do infinito. Sabendo que a vida é muito mais do que vemos dentro de nosso limite racional, como conhecer o que não vemos? Como alcançar o que foge ao nosso limite? Somente com a imaginação podemos fazer este percurso.


Imaginação:


A imaginação, fonte propulsora e inesgotável de toda objetivação, age no poeta transcendental para a multiplicação de suas personalidades. O poeta vive a experiência incessante de auto-criação, se despersonalizando para personalizar outros eus. O impulso propulsivo imaginante vai contra a inércia da objetivação do ser. A fantasia transcendental integra a natureza ao eu e o eu à natureza, assumindo ambos como um só organismo vivo. A arte funciona como força de vínculo e o vínculo em si é a imaginação.


O homem e o mundo:


Na poesia de Coleridge e Wordsworth, homem e mundo se correlacionam em movimento constante de reciprocidade, que festeja a singularidade da vida. A força que anima o mundo fora do homem é a mesma que age dentro do homem. Todo o cosmos é animado pelo mesmo entusiasmo. As imagens poéticas tornam concreto este elo vital, trazendo a terra como cenário que interage com a mente humana. O poeta é capaz, através do intercâmbio com a natureza, de poematizar sua existência, gerando seu próprio sentido e valor.


O homem, o mundo e a arte:


Para Coleridge, a alegria interior ao homem é condição para sua atuação sobre a natureza. Na sua concepção orgânica, o pensamento poético é visto como uma planta, que, pela ação da imaginação, brota e floresce. A obra como planta tem o seu princípio interno, que é a sua semente, tem poder de proliferar idéias, ao se desenvolver gerando frutos, assimila qualquer elemento à sua matéria, como uma árvore cuja raiz suga os nutrientes do solo. O intérprete da obra recebe o convite de não só admirá-la, mas também de participar de sua gênese, integrando-se a ela e buscando dentro dela seus motivos e valores, sem remeter a interpretação ao que é externo à obra.



Espero assim chegar um dia a responder por que um homem com uma caixa de som amarrada nas costas é arte, porque é sim.




[1] Ronaldes de Melo e Souza.

3 Recados:

Aura Sacra Fames disse...

A arte também está nas coisas mais simples pena que sempre estamos muito apressados em acumular mais capital.

Abraços
aurasacrafames.blogspot.com

Diogo disse...

"O ato de resistência possui duas faces.
Ele é humano e é também um ato artístico.
Somente o ato de resistência resiste à morte,
seja sob a forma de uma obra de arte,
seja sob a forma de uma luta dos homens." (Gilles Deleuze)

Liza disse...

... ainda que a arte não exista somente enquanto resistência à morte, mas celebração da morte como parte da vida e não como vetor contrário.