Lúcia


Sua mão formigava até a ponta dos dedos, ali, permaneceu deitado, noutro nível de razão. Na mesa de patina envelhecida, descansava os restos de cocaína e a vodka barata de uma viagem a mais da noite passada. Os quadros minimalistas caídos por cima do sofá plutônio e couro traziam a náusea da miséria dos últimos tempos.
Tudo escuro, inclusive o líquido coagulado no corpo sob a cama... Caminhando em direção ao banheiro ele limpa o vidro do espelho sujo e embaçado, o espírito ainda flutuante, caminha agora em direção à geladeira, passos arrastados, a boca ainda seca, se abre na tentativa de saciar a sede, mas o cheiro forte vindo do quarto anuncia nova náusea. Senta-se com esforço no chão do corredor cor de vinho e voltam os flashs sintomáticos aderidos ao fígado, estômago e traquéia que agora se fecha quase que completamente enquanto pouco a pouco volta a si....
Estava consumado: o bilhete, o telefonema, os gritos,o fim.
Arrastando-se rumo ao quarto, põe as mãos sob o lençol de lasie e afaga o antebraço de Lúcia, o corpo alvo já em estado inicial de putrefação, ainda conserva os cabelos loiros que ele tanto amava, o sangue empretecido secava na fenda formada em seu pescoço, ainda não consegue chorar, três dias talvez? E nem ao menos uma lágrima...
Voltando os olhares para a carreira de cocaína ainda deixada sob a mesa, esboça um sorriso de canto, brincando com o novo carrossel ainda não consumido, senta-se na mesa enquanto joga beijos na direção de Lúcia. Os móveis não estavam na posição que gostava, ficou ali imaginando se fora sua fúria que jogara os rastros de objetos ao redor ou se a deslealdade de Lúcia que o incitara a ter fúria. Logo ele, que apreciava a organização dos fatos e das coisas.
Tudo em seu devido lugar...os quadros quatro dedos acima do sofá, a mesa direcionada ao quarto, o espelho centralizado acima do lavatório, nada alterado, tudo na ordem de seu lar.
Um silêncio. As poças coaguladas em baixo da mesa o incomodaram, amanhã talvez retirasse um pouco dela...Voltou-se para sua infiel Lúcia, deitou ao seu lado. Tão linda...os cabelos ainda estavam loiros.

6 Recados:

Carlos Fontana disse...

Me surpreendi! Adorei a riqueza dos detalhes e o intercalar das sensações confusas e mórbidas. Um conto intrigante prendendo atenções do início ao fim!
Parabéns Nat!

Tatiana Nigro disse...

Da loucura ao lapso! ahaha Da traição a punição...forte, mas com um toque sarcastico bem autentico!
Amei!

M. D. Amado disse...

Você é realmente uma escritora completa. Versátil, inteligente e seus textos tem o mais importante: são gostosos de ler.

Adorei o clima criado nesse conto. E por favor, me dê a honra de publicá-lo no Estronho. ;-)

Beijos horripilantes!

Leonardo Pezzella disse...

É o que eu sempre digo.... SANGUE!!! hehe!

Sem palavras pra vc Nat... Surpreendendo independente do tema. Adorei!

bjos,
£!

Luis claudio disse...

Descreveram muito bem: quanta versatilidade!
Me senti naquele ambiente, e consegui captar exatamente o que tuas palavras e descrições quiseram criar. Conto com sangue, mas sem ficar massante em função de um tema. Deixou fluir numa boa, por isso ficou tão envolvente!
Muito bom!! Deveria escrever mais nesse estilo tb, eu particularmente adoro!
O blog como um td está perfeito, acompanho sempre que posso.
Beijos!

Fabiano Vasconcelos disse...

Suspense e limite da sanidade. Genial! Mas os cabelos continuam loiros...ahahah demais!