Você não me conhece
Pauper
Daquela casa ouvia-se apenas os gritos
De um medo que sempre penetra
Entregam pois, as folhas abertas despidas de esperança
E gemem os pratos suspensos de nada colorido
Assim celebram-se as manhãs
De mãos rasgando a nudez de corpos magros
Recolhendo a surpresa da fome por ossos
Ainda não aprenderam a morder a língua e gritar pra dentro
Errei ao dar luz crias
Perpetuando sementes minguadas
Deixo o cansaço os criar
Sobre tijolos em falso
Nos basta não ter
De línguas e dentes cultivam miséria
Rezam os grandes nos próprios umbigos
Ninando a distancia que pesa
Com os pequeninos
A noite apaga o branco
Puxo destas verdades incoerentes
Faço aliança a impotencia
Da tua lágrima se enxerga o mundo.
A estrada
No princípio, ela engatinhava. Mas agora, ereta, podia andar com as próprias pernas. E nem pedia colo.
Com seus pés descalços ela segue pisando de leve o asfalto quente. O vento que sopra norte e as linhas brancas pintadas no asfalto preto a guiam. Passa um carro ou um caminhão, um ônibus de viagem, quem sabe. Buzinam para que ela saia do meio da estrada. Ela continua. Pisa e pisa, pé após pé, os cabelos e a saia esvoaçantes. Sorria e chorava. Aprendeu bem cedo esse sentimento que mistura tristeza e alegria.
Prédios e montanhas. Passava por lugares em que só via mato por todo lado. Via vacas pastando não muito longe dali. Uma vila com crianças correndo e soltando pipa. Um enorme arranha-céu cercado por arquitetura moderna. A estrada percorria cidades pequenas e grandes metrópoles.
O esmalte das unhas dos pés descascavam. Tropeçava numa pedra. Saía um pouco de sangue do dedão. Entre um tropeço e outro, parava e, sentada no meio-fio, suspirava fundo. Se erguia de novo.
Olhava um carro passar. Lhe ofereciam carona. Mas o percurso com rodas não era o mesmo que o com os pés no chão. E os pés doíam. Passava por caminhos tão escassos de sombras e repletos de coisa alguma e o sol tão forte que o asfalto virava brasa. Quando chovia, ela gostava.
Com dor nas costas, deixou a mochila pelo meio do caminho. O peso na consciência era o máximo que podia suportar. E pra quê carregar o passado nas costas? Se as pernas doíam, andava mais depressa para esquecer.
Muito cansada e sem fôlego ria-se lembrando da gente que esquece que a liberdade é uma estrada. E ela segue em frente. Ah se pudesse ir de avião!
Maktub
O homem sente que o tempo flui
O homem sabe, que ainda que turvas, as respostas vem e vão
E que não existem normas específicas para vida e morte
Morrer é no ato do romper do ciclo
A escolha daqueles que muito ouvimos falar e nada conhecemos
Pois eles, certos ou errados, mandantes ou encarregados, anjos ou demônios cortam nossas correntes
E nos levam de nós
Se termina ou se começa em outro canto
É pergunta milenar
O homem sente que sua família, suas mãos e sua época são impregnados de outros nomes
Nomes dos quais não se lembra, mas a intuição aguça...
Ele lembra do cheiro das romãs, do gosto da graviola e do toque de seus filhos de outrora
Ele vê familiaridade na voz da jovem
Ele ouve pela segunda vez a mesma frase...ouviu quando a primeira?
Ele desejou por tantas vezes aquele desejo e só lhe trouxeram tão depois...
Um dia, o homem sente que encontrou o improvável, o absurdo, o extra-essencial
Ele sente então, o encontro do novo, e se recorda nitidamente que o novo é rastro preparado
Por mãos de quem?
Ele sente que os passos rumo ao extemporâneo o desafiam
Porque ainda que contido, o homem sente o quão além de nós mesmos estamos nós.
Rio duas vias
Três bondinhos por sua Tereza
Posto que nove seja a menina que vem e que passa...
Nem só de Leblon vive a Lapa
Terra-província
Mar que se aterrou
Largo da Carioca que vende arte
Centro-Avenida
Avenida do Rio Branco...
Rio canto,
E se canta é samba
E samba é no morro
Se é morro, tem que ser Estácio
Estácio mira braços Redentor
Estende mãos Guanabara
Pra Guanabara, há quem diga que no Rio não tem Bahia
Há de ter Ilha Grande, tamanha Angra que estoure fenda do saco do céu
Há de ter travessura suburbana nas vilas e casas
Romper Janeiro na copa de um mar
Pra ser Laranjeiras, inegável planta-lá de pé
Rio duas vias
Nascente ao mar.
Arpoando
Nasci em janeiro. Em algum lugar na Tijuca. E desde cedo eu procurava. Fui para Ipanema ver se estava lá. Gringo, gente de sangue azul, arrastão, posto quantos. Briguei com a praia, ela não tinha vento para me dar. Nem no Arpoador, que fica tão lindo em foto, tão feio em vida. Fechei os olhos. Jurei que vi uma baleia. Não, não estava lá.
Fui ver se estava na Barra. Só achei coisa mesquinha. Tentei me encontrar no funk. Até bebi um gole de bossa nova. Estava me apaixonando pelo Chico, mas cantei com a Fernanda Abreu. Me levaram para a Portela. Mas nem o samba deu onda. E eu continuava procurando.
Me escondi por uns tempos na Lapa. Por alguns minutos achei que tivesse encontrado. Hipies de calçada, criança de rua, cheiro ruim, cheiro de pobreza, beleza de rio antigo. Nunca subi no bonde para Santa Tereza. Ao invés disso, corri pela escadaria. Já tentei ser flamenguista. Não gosto de futebol. Onde? Cadê?
Eu chio muito. Isso às vezes irrita. Uma vez me chamaram de carioca. Eu não uso fio-dental na praia, nem vou ao Maraca no domingo. Guardei uma foto do Cristo. Não sei por que, mas passei a vida inteira sentindo falta.
Cartão de crédito
Ele é uma desgraça na minha vida. Acabou com todo meu dinheiro. E acabou com os meus sonhos. Você deve estar pensando que eu sou uma louca. Como um cartão de crédito pode fazer tanto mal a uma pessoa? Mas é isso sim. Ele foi uma derrota que ainda não consegui esquecer. Então tudo bem, vou explicar o que aconteceu pra você não ficar pensando que estou esclerosada.
Trabalho num órgão público. Pessoas passeiam pra cima e pra baixo todos os dias. Então nesse dia, eu já tinha esbarrado com milhares de pessoas tentando ir embora o mais rápido possível. Entrei no meu carro, fechei a porta, encostei a cabeça. Estava muito cansada, precisava de férias. Coloquei a chave na ignição e no momento que tentei sair, o carro que estava estacionado em frente deu uma ré e bateu na frente do meu carro. Fiquei louca! Coloquei as mãos na cabeça e não acreditava que aquilo estava acontecendo comigo. Logo naquele dia em que nada estava indo bem! Fiquei na mesma posição mantendo os olhos fechados. Ouvi um toque-toque no vidro do meu carro. Abri os olhos esperando mais problemas. Abaixei o vidro e vi uma pintura na janela do meu carro. Ela, a pintura, olhava dentro dos meus olhos. Fiquei enfeitiçada. Quando vi já estávamos fora do carro, ele com a mão na minha cintura e com a língua dentro da minha boca! Está certo, eu sei o que vocês estão pensando, mas não sei contar como isso foi acontecer! Fiquei bêbada ou doida, pois não sei dizer o que houve. Gente, ele era lindo demais. Devia ter uns 22 anos, forte, moreno, sorridente e com uma boca indescritível. Imagina, eu, uma mulher de 35 anos, noiva, quase casada, beijando um rapazinho de 22 aninhos que bateu no meu carro no estacionamento. Loucura, né?
Saímos algumas vezes. Tive que dar o meu telefone pra ele, até porque tinha que pagar o meu prejuízo. Mas tudo começou a desandar a partir daí. Como ele estava pagando o conserto do meu carro, e ele era estagiário lá onde trabalho, – então não ganha maravilhas – eu paguei os motéis em que ficamos. Pronto, falei!
Numa segunda-feira, saímos pela última vez. Não podia continuar com esta história. Eu tenho um noivo. Ou melhor, tinha! Fiz uma burrada! Usei cartão de crédito todas as vezes que fomos ao motel. Acabei usando sem querer o cartão de crédito adicional do meu noivo. Pensei que fosse o meu, mas não era. Nisso, chegou a fatura com todas as vezes que fui ao motel. Não tive como mentir. Brigamos feio. Ele me disse coisas horríveis e eu não tive como me defender. Sei que fui errada, pisei na bola como dizem por aí, mas pensei que fosse apenas uma aventura. Uma aventura que destruiu tudo o que eu sonhava.
Coloquei toda a culpa no cartão de crédito. Eu precisava culpar alguém por isso. Não podia levar esta culpa sozinha. Quebrei o cartão em mil pedaços e joguei pela janela do meu quarto. Minha família ficou sem entender o motivo do término do noivado. Ele não disse nada e eu inventei uma historinha.
Eu estou aqui sozinha. Ontem saí com algumas amigas e o vi lá com outra menina, mais nova. Eu cheguei, ele saiu e pagou com o cartão de crédito. O cartão que ele fez pra mim. Fiquei arrasada. Eu paguei o cartão antes de quebrá-lo e percebi que o cartão de crédito é uma desgraça mesmo. Não quero mais saber dele. Acabei com todos os meus. Uso apenas o débito. Espero que você faça o mesmo. Eu sou prova viva de que ele um dia acaba com sua vida.
Show dos milhões
E os números são: 15,22,09,02, e 02.
Selmo estava paralisado, sentia o peso das veias saltando freneticamente. Mal podia conter a euforia, sua vontade era mesmo de acordar os vizinhos com seus gritos histéricos, bancar o boiola que sai do armário: – Dois milhões!
Desordenadamente, pôs-se a imaginar todos os sonhos que seriam realizados... as mil viagens à Paris, os casacos de couro, os ternos italianos, as mulheres que passariam por sua cama, carros,festas e a inveja que causaria.
Caminhou em direção ao banheiro e mirou-se fronte ao espelho, esboçou um sorriso de canto bolando todas as novas expressões faciais e o novo “estilo” que exibiria, optou de cara por forçar em todas as próximas conversas o sotaque paulista,(já que sempre viu nas novelas o quanto o “R” de poR favoR tende a soar mais ‘chick’) daria uma coçadinha na cabeça a cada som emitido, bem no estilo Fábio Junior, e pra finalizar, celular só se for no viva voz, dando a impressão de "importante".
Parou por um instante, interrompeu os planos a seco e sentou-se no chão de sua sala 4x4, angustiou-se diante da iminente parte “prática”. Então, seu rico dinheirinho teria uma preciosa parte abocanhada pelo governo e, logo os boatos correriam e seu telefone não pararia de importuná-lo, daí, os amigos do pré 1 reapareceriam todos para cobrar as farras e rodadas ‘por conta da casa’, sim, por conta de SUA casa. Os conhecidos só tocariam em assuntos relacionados a desemprego, os tios correriam para pedir pela mensalidade atrasada da faculdade dos primos, os irmãos nem se fala... iriam chorar todas as mazelas de quem vive de aluguel, até sua vó escolheria um péssimo momento para dar-lhe despesas com internações e velório, sua vida se transformaria em um inferno chamejante de pedintes.
Olhos inquietos, não miravam foco, o suor pingava...
Decidiu-se por fugir, sabe se lá o que inventar, falar talvez ao pai que virara travesti e decidira ‘ganhar a vida’ na Espanha. Ou, simplesmente sumir, correr dos pedidos de favores indesejáveis, sair do estado, do país, rumo aonde seu dinheiro estivesse a salvo dos olhos invejosos e pedintes.
Procurou relaxar, dos dias que teria para retirar seu prêmio faria ele a estratégia mais mirabolante para recebê-lo despercebido.
O suor agora secava e a pulsação diminuía, deliciou-se com um copo de café, jogou-se no sofá, ligou a TV que transmitia o ganhador do prêmio: - Verônica Santos, residente do interior da Bahia!
O peito de Selmo saltava pelos olhos agora totalmente arregalados, voltou-se em ato desesperado para o bilhete: - Não impossível, ta aqui: 15,22,09,02 e 03...calou-se e voltou rapidamente os olhos para o último número: 03...03?
Os olhos ardiam tanto, que foram adormecidos ainda abertos.
Voltava assim a pacata rotina anterior, vida ‘apertada’ de altos e baixos, mas Selmo estava ansioso novamente, segunda, era dia do jogo de cartas com os velhos amigos do pré 1.